Dois dias de febre e incompreensão
Ricardo de Almeida
Chegou em casa cansado. Não havia ninguém lá a esperar por ele. Acendeu a luz, e largou qualquer coisa na cozinha. Desarrumada, como o resto do pequeno apartamento, depois de dois dias de uma febre de origem indeterminada que o acometeu.
“Psicogênica”. Foi na melhor definição que ele encontrou na web, enquanto alucinava sobre os perigos de alguém só e doente. Porque tudo fica muito pior para alguém fragilizado quando nota que está só, e pode ser acometido a qualquer momento de algum mal mais grave, sem ter ninguém para recorrer. Morar só é muito bom. Menos quando se fica doente.
O ano foi duro e inclemente. Sem diversão. Uma sucessão interminável de tormentos, que foram piorando depois do dia seis de abril. Depois deste dia, tudo ficou escuro e sombrio. Perdão pelo lugar comum, mas, é ele que se sentia assim, e não eu. Eu só anoto o que acontece com o infeliz. Ele trabalhou todos os finais de semana. Quando começou e mudar a maré ruim no trabalho, a situação da familia (sempre a situação da familia!) o puxou para baixo. Não houve como evitar. Tentou uma fuga para o trabalho que o esgotou. Agora, sentia-se vazio, e incapaz de apaixonar-se por qualquer coisa que seja.
As palavras não eram mais as boas companheiras. Agora eram traidoras, a denunciar seu fracasso e sua incapacidade de moldar-se ao mundo ao seu redor. Sempre a apontar sua virulência, insatisfação e maldade, com as quais ele afastou a todos em sua vida. Ele havia finalmente reconhecido que estava irremediavelmente desajustado emocionalmente. E bastante. Mas não havia muito a fazer.
A febre foi embora em dois dias. Ele soube que estava bom quando notou que sua costumeira insônia voltara, novamente. A febre havia surgido somente para fazer sua mente parar de especular no desespero. Para fazê-la parar, de alguma forma.
“Ela não vai mais voltar”, ele pensou. E foi bom que o fizesse. Ela foi embora, levou toda a alegria da vida, e ele haveria de aprender a viver com isso. Ou acabar deixando a vida tomar seu curso mais fácil. Qualquer coisa serviria para ele. Nada era melhor do que coisa nenhuma. Os caminhos já haviam sido percorridos. Quase todos. E ele já estava mais do que exausto. Talvez sua alma fosse mesmo pequena. Porque para ele, agora, nem tudo mais já valia a pena.
Secretamente, ele sonhara para si o mesmo fim terrível que teve Fernando Pessoa. Mas nunca foi digno como o luso. E tinha medo. Muito medo. Ele estava só. O que nunca foi dificuldade para ele. Ele estava só, e pela primeira vez, notou que não se bastava. Fechou os olhos, e mergulhou na escuridão.
229º dia
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