Eu
tenho saudades
Sergio
da Motta e Albuquerque
Eu tenho saudades
dos bares antigos, das mesas de mármore e do ar respeitoso da gente
que os frequentava. Eu tenho saudades dos telefones pretos, que não
informavam nossas vidas às grandes empresas e destruíam nossas
vidas privadas. Eu tenho saudades da vida privada e da pública
também. Pois hoje as tecnologias de comunicação distorcem vidas
humanas e criam sociedades de seres desequilibrados. Que não sabem
estabelecer bem a diferença entre o que deveria ser íntimo e
privado, e nunca público ou publicado.
Eu tenho saudades da
vida mais simples, dos livros de papel e dos jornais das bancas. E do
café com leite nas manhãs. Eu tenho saudades do jornalismo de
verdade, e de mentira, como as crônicas de Nelson Rodrigues. Eu
tenho saudades de um Brasil mais pobre e honrado. Que tinha uma
fisionomia distinta das outras do planeta, e já não tem mais. Hoje
somos como os outros países e os outros povos; queremos apenas
consumir mais.
Eu tenho saudades da
velha política, quando minha mãe levava-me à Câmara dos
Deputados, que ficava no Rio de Janeiro, à Rua Primeiro de Março.
Ela me dizia: “- Sergio, o Deputado Abelardo Jurema é líder da
minoria, e só tem um terno”. Quantos ternos têm nossos
congressistas hoje? Eduardo Cunha, quantos tem e não pode usar onde
está? Minha mãe apontou a virtude rara de um político no velho Rio
de Janeiro. E por falar na minha cidade, eu tenho saudades do Rio, a
Capital da República. Pois Brasília aviltou nossa cidade
maravilhosa e fez dela um covil de bandidos, onde crianças são
baleadas nas escolas todas as semanas.
Quem duvida que a
decadência do Rio foi causada pela transferência da capital para o
centro do Brasil não conheceu e viveu no Rio, Capital da República.
Não haveriam as quadrilhas super-armadas com o presidente da
república aqui na cidade que já foi maravilhosa. Eu tenho saudades
de quando não existia Brasília e sua corja de ladrões bilionários,
e do Brasil que existia antes dela. E do povo que saía as ruas para
enfrentar governos e fazer guerrilha contra a ditadura. E da vergonha
na cara, pois não vejo as ruas cheias de gente a protestar contra o
governo mais infeliz de nossa história, e sua insana pretensão de
continuar governar.
Eu tenho saudades do
amor. Que se encontrava nas tardes de domingo, quando íamos aos
cinemas. Eu tenho saudades deles , também. Dos cinemas nas ruas,
praças e avenidas Eu tenho saudades das quitandas de vendedores
portugueses e brasileiros, e odeio “shopping centers” e sua
estética do mau-gosto de cidade americana. Eu tenho saudades de
quando não existia a Barra da Tijuca, e nós íamos passear lá e
ver o caimão nadar na lagoa escura naquela região ainda selvagem.
Eu tenho saudades de
jogar linha de passe na cimeira mais alta alto do Corcovado, a 800
metros de altura, com dois amigos e uma bola pequena. Tínhamos o
Cristo Redentor só para nós, em 1979. Eu, Ricardo e Luís Antônio
jogávamos ali, com a permissão de um policial que deveria estar de
guarda, mas já era madrugada e ele dormia, junto com a cidade
inteira. E nós ali, a jogar, à beira do precipício. Qualquer
descontrole, e a bola caía no abismo. Assim acabavam todos os jogos.
Eu tenho muitas lembranças desses brinquedos com meus amigos. Éramos
vagabundos e irresponsáveis, por revolta contra um regime que não
deixava um jovem explorar sua capacidade criativa. Havia censura.
Havia ameaça. Havia prisão, tortura e morte. Havia covardia. E
rebeldia. Que um dia me cobraria preço muito alto.
Hoje olho para trás,
ingrato. Não conto as minhas bênçãos. A idade chegou e com ela
as lembranças que confortam e as certezas que desesperam por não
termos mais tempo. Só legados a terceiros. Não poderemos fazer tudo
o que planejamos. Não temos mais tempo. E ainda temos tanto a dar.
Mesmo assim, a sociedade nos afasta. Não nos quer. Porque temos mais
de 60 anos de idade. Pouco importa nossa real condição física,
intelectual ou mental.
Eu tenho saudade dos
amores que perdi por mau gênio. Por auto-suficiência da juventude.
E agora, aos 62 anos, creio ter ainda algum tempo para lembrar o que
ficou para trás e nunca será resolvido. A vida é assim: algumas
coisas jamais serão resolvidas. Jamais chegarão a termo. Deixaremos
este mundo sem que nossas vontades e caprichos se cumpram. Porque
Deus nos quer mais humildes, e não reizinhos imprestáveis.
Eu tenho saudades de
Deus.
Rio de Janeiro, Sete de Julho de 2017